Atualidade do cancro do pulmão

Não há como não sermos – Dia Mundial dos Cuidados Paliativos

Não te aflijas com a pétala que voa:
Também é ser, deixar de ser assim.
(…) E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
Cecília Meireles

Não há como sermos os mesmos quando aquela tosse insistente ou aquela dor incómoda no dorso com algumas semanas é um nódulo no pulmão na radiografia. Não há como sermos os mesmos quando aquele nódulo suspeito é um cancro do pulmão. Não há como sermos os mesmos quando nos abrem o corpo e nos retalham parte do pulmão que é nosso para levar o cancro que não é de ninguém. Não há como sermos os mesmos quando nos dizem que vamos ter de fazer um tratamento, ainda que até nos possa curar do cancro. Não há como sermos os mesmos quando nos dizem que o tratamento já não vai a tempo de curar o cancro, mas de o controlar no seu crescimento. Não há como sermos os mesmos quando nos dizem que o tratamento do cancro falhou e que um outro tratamento será experimentado. Não há como sermos os mesmos quando nos dizem que o cancro ganhou raízes no nosso corpo. Não há como sermos os mesmos quando o nosso corpo se altera ao nos olharmos no espelho. Não há como sermos os mesmos quando nos descobrimos cansados nos caminhos antigos. Não há como sermos os mesmos quando nos apercebemos de que somos frágeis e finitos. Não há como sermos os mesmos. Mas ainda assim podemos continuar a ser. Provavelmente, não os mesmos que éramos, mas nós transformados.

Em qualquer um destes momentos, o sofrimento inunda a nossa vida como uma onda do mar, que nos molha da cabeça aos pés, por mais que corramos para longe. Tal como a onda do mar que rebenta e traz consigo as conchas, os búzios, a areia, os peixes, as algas, também o sofrimento pode trazer consigo a falta de ar, a dor, o cansaço, a falta de apetite, a insónia, a ansiedade, a incerteza, o medo, a dúvida, a revolta, o arrependimento, o perdão, o amor, o mistério, … Neste mergulho inusitado provocado pela transformação de nós mesmos diante do cancro que irrompe a história da nossa vida, precisamos de ser acolhidos e acompanhados, precisamos de quem nos ajude a nadar nesse oceano, que é a vida transformada.

As equipas de cuidados paliativos são pequenos barquinhos que navegam connosco nesse mar imenso para aliviar o nosso sofrimento. Os profissionais de saúde que trabalham em cuidados paliativos ajudam-nos a fazer essa travessia mar adentro, nutrindo a nossa viagem de verdade e afecto. Aliviam o desconforto do nosso corpo; escutam as nossas emoções mais profundas, da alegria à tristeza; suportam e apoiam a nossa família e aqueles que cuidam de nós; tocam-nos a alma quando permitimos. Mesmo em alto-mar, quem trabalha em cuidados paliativos, avista-nos, como pessoas inteiras – lembra-nos que, independentemente do cancro, não há como não sermos.

Dra. Manuela Vidigal Bertão
Assistente de Medicina Interna CHUPorto
Equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos CHUPorto
Grupo de Estudos e Reflexão em Medicina Narrativa

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