O impacto psicológico da pandemia COVID 19 nos doentes oncológicos
A doença oncológica encontra-se incluída no grupo das enfermidades que ameaçam a integridade física e psicológica do indivíduo, tendo, portanto, um impacto profundo na forma como os indivíduos se percecionam e percecionam o ambiente social que os rodeia.
O diagnóstico de uma doença oncológica é um dos acontecimentos mais desorganizantes da vida de um individuo, despoletando respostas emocionais de medo, insegurança, incerteza, depressão, ansiedade e angústia intensa. O cancro está, ainda, muito associado a uma evolução fatal, e os tratamentos que o acompanham estão agrilhoados a um marcado sofrimento psicológico para o doente e para a sua família.
O diagnóstico e todo o processo da doença são vividos pelo doente e pela sua família como um momento de marcado sofrimento e ansiedade (Venâncio, 2004). Após o impacto inicial alguns doentes revelam uma boa adaptação à doença, no entanto, muitos outros manifestam um desânimo geral e profundo (Matos & Pereira, 2002). Cada doente lida com a doença oncológica de forma pessoal e individual, contudo, o facto de alguns doentes oncológicos tenderem a suprimir a expressão das suas emoções, pode contribuir para o aumento dos níveis de ansiedade e depressão (Cardoso, Luengo, Trancas, Vieiera & Reis, 2009). O sentimento de impotência está muito presente entre os doentes, já que pouca coisa pode ser feita para evitar o aparecimento do cancro e a sua evolução é incerta e desconhecida (Venâncio, 2004). A presença de diversos medos é também um elemento comum nestas situações: o medo da morte, do desfiguramento quando a doença evolui, o medo do sofrimento e da dor (Veit & Carvalho, 2010).
A presença de comorbilidade psicológica nestes doentes é elevada, entre os diversos aspetos psicossociais, encontram-se questões e medos existenciais, ansiedade, depressão, dilemas associados à tomada de decisão, desconforto, insónia, comprometimento funcional, alterações da imagem corporal e da sexualidade, rutura de relações afetivas, familiares e sociais, dificuldades ao nível do exercício profissional e questões de caráter económico, considerando que a doença não afeta somente o doente mas também a sua família (Antoni, 2013; Butow, Girgis, & Schofield, 2017). A morbilidade psicológica não tratada pode resultar em aumento da dor, fadiga, bem como diminuição do funcionamento físico e social, traduzindo-se em baixa qualidade de vida, sendo o apoio psicológico ser fundamental para diminuir esse mesmo sofrimento (Vollmer et al., 2011).
Desta forma, a doença oncológica gera um sofrimento psicológico acompanhado de mal-estar emocional em metade dos doentes, podendo-se verificar ainda transtornos psicológicos, entre os quais, perturbação de adaptação à doença, ansiedade generalizada, depressão major, perturbações de humor e ideação suicida (Hulbert-Williams, Storey, & Wilson, 2014).
Dado o impacto do cancro em diferentes níveis da vida da pessoa, é crucial uma abordagem multidisciplinar que inclua tratamento psicossocial. Assim, intervenções multidisciplinares tornam-se uma necessidade – tratar o doente de forma holística e integradora, considerando o seu todo, uma vez que é a pessoa na sua totalidade que está doente (Veit & Carvalho, 2010).
A investigação e a constatação clínica têm demonstrado que o acompanhamento psicológico dos doentes oncológicos e das suas famílias tem um impacto significativo quer ao nível da adoção de estratégias de coping, quer em termos de adaptação à doença, adesão aos tratamentos, gestão das complicações e do prognóstico.
Uma das principais intervenções do psicólogo consiste em ajudar a pessoa a lidar com o diagnóstico de cancro e a participar ativamente no seu tratamento, mobilizando os seus recursos internos, para aumentar as possibilidades de melhoria ou cura (Silva, Loureiro & Sousa, 2004). Embora alguns doentes consigam adaptar-se bem à doença, nem todos reagem bem ao diagnóstico, sendo as respostas emocionais mais comuns, como já mencionadas anteriormente, são a ansiedade e depressão, incluindo a expressão de medos, raiva, revolta, desesperança, culpa e pensamentos suicidas.
Pode-se concluir que o psicólogo tem o papel de ajudar o doente e a sua família a modelar o impacto psicológico do diagnóstico, incentivando-o a falar sobre a sua situação, a exprimir os seus sentimentos e emoções, procurando aliviar a tensão, desmistificando crenças errôneas e fazendo ressignificações, com o objetivo de promover a aceitação e o ajustamento à realidade. Consequentemente, fomentar a adesão terapêutica, a adaptação à doença, fornecendo estratégias de coping que estabilizam o doente perante agentes de stress e que facilitam o ajustamento.
De ressalvar que, para que a intervenção seja o mais adequada possível, devem ser tidos em conta os aspetos que se realçam nas diferentes fases e a unicidade de cada paciente, sempre tendo em consideração que cada indivíduo reage de forma diferente a eventos que ameaçam a sua vida, como é o caso do cancro (de Vries & Stiefel, 2014).
Neste contexto de profunda instabilidade psicossocial decorrente do diagnóstico e curso da doença oncológica, o doente tem, de momento, que enfrentar um novo desafio, com o aparecimento súbito e repentino do novo coronavírus causador da COVID – 19.
A emergência da pandemia do novo coronavírus (COVID – 19) tem-se revelado como um dos maiores desafios de saúde pública mundial. Para além, dos efeitos na saúde física dos indivíduos, trouxe também efeitos psicológicos significativos, sociais e económicos. Em linhas gerais, na vigência de pandemias, a saúde física das pessoas e o combate ao agente patogénico são os focos primários de atenção de gestores e profissionais de saúde, de modo que as implicações sobre a saúde mental tendem a ser negligenciadas ou subestimadas (Ornell, Schuch, Sordi & Kessler, 2020).
Contudo, a implementação de medidas para minimizar o impacto psicológico da pandemia não pode ser desprezada nem esquecida, especialmente em populações vulneráveis, como a população oncológica.
O medo de ser infetado por um vírus potencialmente fatal, de rápida disseminação, e com maior risco de infeção na população oncológica, cujas origens, natureza e curso ainda são pouco conhecidos, acaba por afetar significativamente o bem-estar psicológico (Asmundson &Taylor, 2020). Sintomas de depressão, ansiedade e stress associados à pandemia têm sido identificados na população geral (Wang et al., 2020) e, em particular, na população oncológica. Tem-se verificado que a presença de problemas de saúde prévios, como a doença oncológica, são fatores significativamente associados a maiores níveis de ansiedade, depressão e stress.
De salientar que, para além do impacto psicológico diretamente relacionado com a COVID – 19, as medidas de contenção da pandemia são elas mesmos fatores desencadeantes de morbilidade psicológica. O confinamento, o isolamento e o distanciamento social despoletam respostas emocionais marcadas, que podem conduzir a sintomas de stress pós-traumático, confusão e raiva. Esse cenário parece agravado também pela difusão de mitos e informações erradas e ambivalentes sobre a infeção. A alteração e imposição de rotinas podem alterar os hábitos do doente, tornando-o mais vulnerável e frágil, o que se traduz em elevados níveis de ansiedade e stress. Estes doentes, atendendo à sua condição psicológica, necessitam de um acompanhamento diferenciado e de um “olhar” mais atento, a fim de atenuar os sentimentos negativos gerados e promover a adaptação a esta nova situação de vida.
A ansiedade em relação à saúde também pode provocar interpretações errada das sensações corporais, fazendo com que as pessoas as confundam com sinais da doença e se dirijam e recorram desnecessariamente a serviços de saúde, podendo despoletar crises severas de ansiedade, assim como desenvolver sintomas obsessivo-compulsivos, como a verificação repetida da temperatura corporal, entre outros. O doente oncológico é já por si hipervigilante em relação ao seu corpo e sensações, tornando-se ainda mais focado no mesmo, o que conduz a alterações emocionais e comportamentais significativas.
Como já referido, a presença de comorbilidade psicológica nos doentes oncológicos é elevada, sendo os problemas emocionais e o sofrimento psicossocial muito comuns nesta população. Neste contexto de marcada vulnerabilidade psicossocial a pandemia promove a gravidade destes quadros psicológicos, intensificando o sofrimento para o doente e para a sua família.
Analisados em conjunto, todos esses fatores remetem à relevância de intervenções psicológicas alinhadas às necessidades emergentes no atual contexto de pandemia por COVID – 19.
A premência do acompanhamento psicológico a estes doentes nesta fase de pandemia prende-se com o fomentar de um ajustamento à situação, combatendo o medo de abandono, de incerteza na resposta dos serviços de saúde oncológicos, no medo de contágio e no medo de progressão da doença durante esta fase. Alterações no atendimento e no circuito do doente nos serviços de saúde, desencadeiam no mesmo sentimentos de insegurança e de abandono clínico, tornando-se fundamental um contacto periódico com o doente, a fim de o tranquilizar. Este sentimento de abandono é verbalmente e comumente reiterado pelo doente e pela sua família.
Todos os medos promovem uma significativa morbilidade psicológica, que vem dificultar a já muito frágil estabilidade emocional. Perante estes doentes, o desafio do psicólogo consiste em minimizar o sofrimento provocado pelo isolamento, prestar esclarecimentos, escutar angústias, ansiedades, medos e minimizar o seu impacto.
O apoio psicológico visa a identificação de resposta emocionais desadaptativas, assim como, o fornecimento e atualização de informação, de forma a diminuir a angústia, retirar dúvidas e a normalizar a situação. Estudos revelam que fornecer informações precisas e concretas sobre a situação atual de pandemia, sobre formas de prevenção e de tratamento, consistiram em fatores significativamente associados a menores níveis de ansiedade, depressão e stress (Wang et al., 2020).
O facto de se criar um espaço e um momento para que possam partilhar sentimentos e preocupações, faz com que as pessoas percebam que não são as únicas a passar por esses problemas e, dessa forma, se sintam menos isoladas e incompreendidas. Falar sobre as preocupações, problemas e sentimentos revela-se importante, pois facilita a descarga emocional e de tensão e, consequentemente, favorece o bem-estar físico e psicológico. Além disso, ajuda a integrá-los, promovendo adaptação e ajustamento à realidade.
As estratégias para promoção de bem-estar psicológico, passam por manter a rotina de atividades de vida diárias sob condições seguras, cuidados com o sono, manter prática de atividades físicas e promover técnicas de relaxamento, assim como o fortalecer das ligações com a rede de suporte social, recorrendo a videochamadas, sempre que possível, contrariando, deste modo, sentimentos de solidão e vulnerabilidade. Recomendar ainda que seja reduzida a exposição a informações, como noticiários e jornais a uma vez ao dia, uma vez que o impulso de estar sempre a ler notícias relacionadas com a pandemia são promotoras de ansiedade e angústia.
De salientar, que a família do doente oncológico experiencia níveis clinicamente significativos de stress e perturbações psicossociais, entre os quais, intimidação sobre o diagnóstico e prognóstico da doença, alteração das rotinas familiares, adaptação aos efeitos colaterais dos tratamentos e das diferentes fases da doença, sentimentos de culpa, alterações ao nível dos papéis familiares e da sexualidade (Dias, Manuel, Xavier, & Costa, 2002), das relações interpessoais e profissionais, podendo surgir, grande parte das vezes, problemas económicos (Pereira & Lopes, 2002). Todas estas disrupções são intensificadas pelo pânico de contagiar o familiar doente, fomentando na família um aumento de morbilidade psicológica que, por sua vez, vai afetar e desequilibra-lo ainda mais. Por conseguinte, a sua principal rede de suporte pode estar desta forma comprometida, falhando num momento crucial para o doente.
O confinamento leva a que muitas vezes os elementos familiares estejam mais tempo juntos, o que, frequentemente aumenta o conflito interpessoal, a intervenção psicológica terá aqui o intuito de implementar e reforçar estratégias eficazes de comunicação, a fim de promover o diálogo e a estabilidade entre os elementos da família.
Em suma, consideramos de extrema pertinência e premência a intervenção psicológica com a população oncológica nestes tempos atuais de pandemia COVID – 19, para minimizar o impacto negativo e a morbilidade psicológica, assim como, promover o bem-estar psicossocial e a readaptação a esta nova realidade.
Dra. Susana Samico
Psicologia clínica e sexologia
Equipa de Psico-oncologia do CHU de São João – Porto